SÃO LUÍS - 400 ANOS


QUEDA NA ESCURIDÃO

José Neres


            A velhice sempre traz consigo o desprezo dos que são mais jovens, mais vigorosos e que se julgam mais inteligentes. Juntamente com as reminiscências de um passado sobre o qual ninguém mais quer ouvir, a idade avançada caminha lado a lado com o descaso das autoridades e de braços dados com o irônico riso daqueles que acreditam que jamais envelhecerão.
            Eu passei a vida inteira vendo veículos e pessoas transitando por minha porta, rumo ao serviço, à escola, à faculdade ou mesmo indo ao encontro dos prazeres mais inconfessáveis. Vi inúmeros casais apaixonados procurando um beco escuro para a realização de suas fantasias. Mas o tempo foi passando e meu aspecto feio e sombrio foi afastando a juventude do meu redor. Mas jamais fique sozinho. Sempre era procurado por quem se via sem abrigo, ou por ladrões, marginais de todos os tipos, prostitutas e cheiradores de cola, que sempre confiaram na minha discrição e na minha acolhida silenciosa.
            Mas já faz algum tempo que não me sinto muito bem. Mesmo assim, acreditava que ainda participaria das festividades pelos 400 anos de minha cidade. Pensei que meus filhos teriam pena de mim, de um velho com tantos momentos de glórias, alegrias, dores e sofrimentos. Inocentemente acreditei que alguém iria preocupar-se com minha saúde, ou pelo menos com minha aparência. Mas me enganei.
            Despertei para essa triste realidade quando vi, nos últimos anos, um a um, meus irmãos e minhas irmãs morrerem à míngua, deixando apenas um vazio enorme no coração da Cidade. Mas esse vazio não durava muito tempo. O mundo é dinâmico. Parece que a visão da decrepitude agride os olhos de quem busca apenas a beleza da juventude e do progresso. Percebi que o meu destino deveria ser o mesmo. Morrer. Ser lembrado por alguns dias. Ter minha foto estampada em algum jornal e depois virar entulho de história. E, finalmente, cair no eterno limbo do esquecimento.
            Ontem choveu muito. Senti que era uma chuva diferente. Mais forte que o comum. O vento passava por mim, assobiando aos meus ouvidos uma ladainha sem fim. As pessoas corriam de um lado para outros. Os homens, orgulhosos, fingiam que não sentiam a força da tempestade e tentavam enfrentar os potentes pingos d’água com o aspecto de que nada acontecia. As  mulheres, por outro lado, tentavam se proteger com as sombrinhas que nada protegiam e que teimavam em dobrar-se contra a forte chuva. Algumas tentavam disfarçar a transparência das roupas molhadas com o que tivessem ao alcance. A visão dos corpos femininos molhados fazia com que os rapazes esquecessem a ferocidade dos raios que cortavam o ar e os trovões que assustavam a todos. E eu a tudo observava. Com a angústia de quem sente que seu tempo está acabando.
            A tempestade espantou a multidão, e eu me vi sozinho. Nunca tive medo de nada. Enfrentei mil e um problemas. Fui vítima de décadas e mais décadas e descaso. Sobrevivi a dezenas de administrações caóticas. Mas nunca havia sentido o fim tão próximo assim...
            Raios, ventos e trovões pareciam anunciar meu fim. De repente, todas as lâmpadas apagaram. A treva ficou senhora da situação. Como um leproso, senti cada parte minha se desfazendo, misturando-se com a enxurrada e sendo levada pela água para longe de mim.
            Tentei resistir. Tentei apoiar-me em um colega que estava ao lado. Vendo que isso seria o fim de ambos, soltei-o e caí pesadamente. As luzes voltaram. Vi minha cidade pela última vez.
            Menos um casarão histórico na cidade. Amanhã, tenho certeza, alguém retirará meus escombros e transformará o espaço de minha história em um movimentado e lucrativo estacionamento. Parece que minha velhice atrapalhava o progresso de minha cidade em seus 400 anos. Minha morte é recebida como um presente.