segunda-feira, 2 de abril de 2012

Eva Chatel, uma prosadora


A PROSA CRÍTICA E REFLEXIVA DE EVA CHATEL

José Neres
(Professor de Literatura. Coordenador do projeto Sistema Literário Maranhense.)



            Uma das grandes angústias de quem se dedica às letras é a pergunta tantas vezes revisitada sobre a utilidade da arte literária. Muitas pessoas imediatistas querem que a literatura tenha obrigatoriamente uma utilidade prática no dia a dia; outras consideram que o ato de ler não deva ser visto unicamente como uma tarefa que busque um fim fora de si mesmo, mas admitem que a literatura e a leitura em geral são essenciais para a formação do ser humano. Há também quem defenda a ideia de que a literatura seja apenas um suporte para a manutenção das ideologias dominantes, de perpetuação no poder de elemento e instituições que usam as letras como forma de eternizarem-se como figuras hipoteticamente importantes. Também existe quem acredite ser a literatura um importante instrumento de libertação coletiva ou individual, servindo a palavra escrita como fonte de reflexão sobre os acontecimentos norteadores do destino da humanidade.
                Para que serve a literatura? Para ensinar? Para divertir? Para eternizar  ideologias? Para trazer à realidade as mirabolantes histórias que povoam o fértil imaginário de um escritor? Ou, quem sabe, como forma de ganhar dinheiro sentado diante de uma folha de papel ou da tela de um computador?  Contudo, diante da sensação de ser levado pelas aventuras de um romance, de ser embalado pelo ritmo cadenciado de um poema ou de vivenciar a essência humana nos diálogos de uma peça teatral, o questionamento sobre a utilidade da literatura se torna uma discussão sem muita importância.
            Durante o ato de leitura, a pessoa mergulha não apenas nas denotações e conotações expressas pelas palavras, mas sim em um processo de conhecimento do próximo e de autoconhecimento. Ninguém que leu com atenção um bom livro sai das páginas do texto da mesma forma que entrou. Sai transformado, mas crítico, mais atento e muito mais humano.
            E é isso o que acontece quando se chega à última linha de um dos contos de “Substantivo Próprio” ou ao final de um dos dezoito capítulos da novela “De Volta”, ambos de autoria de Eva Maria Nunes Chatel, experiente professora de língua e literatura que resolveu brindar seus alunos, colegas, admiradores e leitores com sua prosa bem articulada e cheia de densidade crítica e psicológica.
            Em Substantivo Próprio, que traz como subtítulo “Fábulas Humanas”, a autora optou pela narrativa curta, centrada em breves contos nos quais as mazelas humanas são tratadas de forma lírica e contundente ao mesmo tempo. As histórias aparentemente banais e que podem ser vivenciadas cada rua de uma cidade qualquer podem até parecer simples à primeira vista. Contudo essa aura de cotidiano é sempre quebrada com reflexões que saem do senso comum e alcançam as profundezas da alma humana, sem deixar de lado a preocupação com o bem-estar social, econômico, físico e moral das pessoas.
            Em cada conto, no total de catorze, Eva Chatel associa os acontecimentos narrados às características inerentes a um animal. Nessas verdadeiras fábulas humanas, uma mulher trabalhadeira como Josefa, que é humilhada por sua condição profissional e social, pode decidir continuar sendo considerada apenas uma peça na engrenagem da exploração pecuniária ou estudar com o intuito de sair da miséria econômica e, principalmente, conseguir ser respeitada como ser humano que é. Sua teimosia é metaforicamente comparada à de uma jumenta, que “é teimosa, mas sabe dar coices certeiros” (p. 35). Anastácia, em outro conto, mãe de diversas crianças, percebe que sua prole pode seguir o mesmo destino dos filhotes dos porcos, ou seja, podem ser destinados ao abate. Da mesma forma, seres humanos como Alberto, Damião, Margarida, Marcelo, Oliveira e todas as outras personagens parecem fadados ao fracasso, há,  contudo, nos contos um fio tênue de esperança, que pode vir em forma de educação ou de esforço próprio. Porém, de modo geral, as personagens da prosa de Eva Chatel são sempre seres que “suportam dores, calúnias e desprezo até a última de suas mortes, a qual não causa piedade em quase ninguém” (p. 80).
            Os contos têm como título o nome dos protagonistas e contam com ilustrações feitas pela própria autora. Todavia, embora os nomes individualizem as personagens, o que se percebe é que uma possível troca de nomes não alteraria a situação de nenhum desses elementos marginalizados pela sociedade. Mesmo com nome, todos eles não passam de seres anônimos levados por uma enxurrada de desilusões pessoais e de falta de políticas públicas que lhes tragam alento.
            Na novela “De Volta”, apesar da previsibilidade do desfecho, o leitor se vê preso em um emaranhado de temas que se multiplicam formando uma rede de discussões acerca da própria essência humana e de suas inúmeras ramificações. Utilizando-se do fato de a protagonista, uma senhora octogenária, estar em estado de coma, Eva Chatel aproveita-se dessa imobilidade corpórea para demonstrar como o ser humano é muito mais que um corpo, muito mais que matéria. Livre das amarras das limitações físicas, a narradora vai flanando por ambientes e situações aparentemente corriqueiras, mas que, quando vistas sob outro prisma, ganham densidade e podem servir de base para inúmeras reflexões acerca do homem, seus sentimentos, seus defeitos e virtudes.
            Um bom exemplo disso está no capítulo intitulado Das Necessidades, em que o olhar penetrante da narradora percorre lugares diversos e nota que “muitas pessoas necessitam de apetrechos materiais para se sentirem completas. O planeta poderá até não mais existir em função do acúmulo de poluição, mas ninguém aceita se desvencilhar de nenhum detalhe material que o coloque em vantagem em relação aos outros seres humanos” (p. 31). De forma lírica, mas sem perder de foco as mazelas que atravancam os caminhos do povo, a escritora mostra que as necessidades vão além do que é realmente podendo servir com algemas para quem coloca a matéria acima de tudo.
            Se a cada capítulo do livro o leitor nem sempre pode esperar uma surpresa ou uma reviravolta, é certo que ele encontrará matéria suficiente para mudar o modo de pensar sobre os detalhes aparentemente irrelevantes do cotidiano ou pelo menos para refletir a própria existência humana, pois a narrativa, como comenta o professor Dino Cavalcante na última capa do livro, “expõe, através de um jogo discursivo bem elaborado, as vísceras de uma sociedade cada vez mais individualista, mas materialista, mas capitalista, mas (sobretudo) cada vez mais carente de sentimentos humanos”.
            Com esses dois livros, Eva Maria Nunes Chatel, quase que sem querer, contribui para a resposta das questões levantadas no início deste artigo. Para que serve a literatura? Talvez para fazer o ser humano sentir-se cada vez mais Humano. E isso não pode ser considerado pouca coisa.

3 comentários:

  1. Foi uma grande surpresa ler os livros da professora Eva.Com sua docilidade com as palavras,nos mostra uma escritora competente e que ainda tem muito a monstrar para todos que amam literatura.

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  2. Esse post sobre os livros da Eva Chatel é mais do que merecido. E necessário: há de se divulgar boas produções.
    Aguardo com ansiedade minha volta ao Brasil para poder ler tais escritos. Certamente, as idéias qui ali tomaram forma são das mais agradáveis de serem lidas. E não duvido que nos provoque boas reflexões.
    Boa leitura. Vou ajudar a divulgar também.

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  3. Esse post sobre os livros da Eva Chatel é mais do que merecido. E necessário: há de se divulgar boas produções.
    Aguardo com ansiedade minha volta ao Brasil para poder ler tais escritos. Certamente, as idéias qui ali tomaram forma são das mais agradáveis de serem lidas. E não duvido que nos provoque boas reflexões.
    Boa leitura. Vou ajudar a divulgar também.

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