sábado, 11 de fevereiro de 2012

Semana de Arte Moderna


SEMANA DE ARTE MODERNA: 90 ANOS
José Neres



                Os momentos de ruptura com uma tradição já arraigada são essenciais para a renovação artística de um povo e para o aparecimento de novos valores e de novas concepções artísticas. No início do século XX, o Brasil passava por grandes mudanças políticas, econômicas e sociais, mas continuava atrelado à tradição no que dizia respeito às artes. As Vanguardas Europeias arregimentavam seus simpatizantes e começavam a dar seus primeiros frutos em terras brasileiras, contudo a maior parte da pequeníssima população letrada brasileira continuava adepta dos padrões clássicos.
            Por conta desse apego à tradição, autores de grande talento, como Lima Barreto e Augusto dos Anjos, que produziram obras de alto nível literário, não conseguiram projeção entre seus contemporâneos, que não viam com muita simpatia as inovações temáticas e linguísticas de autores não alinhados com o estilo preconizado pelo mundo acadêmico.
            Ainda no início do século XX, algumas atitudes isoladas tentavam quebrar as barreiras da tradição e mostrar para a população que as artes em geral podem ser representadas de formas diversas, que o diferente e o exótico também poderiam ser apreciados e que o Brasil precisava abrir-se para novas linguagens artísticas. Revistas e jornais alternativos apareciam e despareciam. Exposições de quadros e esculturas tentavam incutir no público um sopro renovador, mas os efeitos desses esforços eram atomizados por severas críticas que quase sempre desestimulavam os poucos que tentavam expor seus trabalhos aparentemente inovadores.
            Foi no início de 1922, mais exatamente no dias 13, 15 e 17 de fevereiro que, de modo mais ou menos organizado, os intelectuais insatisfeitos com os rumos das artes no Brasil conseguiram impor o golpe mais contundente em uma tradição que parecia querer se perpetuar. Nessa data histórica, há 90 anos, era realizadas a Semana de Arte Moderna, evento que deu início ao movimento modernista no Brasil.
            Logisticamente amparados e contando com anúncios rudimentares, porém eficientes para a época, ativistas culturais como Mário de Andrade, Cassiano Ricardo, Manuel Bandeira (que não pôde ir ao evento), Oswald de Andrade, Plínio Salgado, Anita Malfatti, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Di Cavalcanti, Paulo Prado e muitos outros homens e mulheres preocupados com o atraso cultural do Brasil mudaram, com esse evento, a forma de ver, discutir e produzir arte.
            Mas como quase todos os participantes eram ainda muito jovens e com pouca ou nenhuma projeção nas artes, o grupo precisava de um nome forte que pudesse chancelar o evento e que também levasse público pelo menos para a palestra inicial. Coube ao escritor maranhense Graça Aranha esse papel de abrir a solenidade como a palestra “A Emoção Estética da Arte Moderna”, proferida no dia 13 de fevereiro daquele ano.
            Mas foi no segundo dia do evento, em 15 de fevereiro, uma quarta-feira, que ocorreram alguns dos momentos mais memoráveis da Semana. O público, não entendendo aquelas pinturas, esculturas, músicas a que os organizadores e palestrantes teimavam em chamar de arte, manifestava-se de forma agressiva, furiosa e até violenta, com vaias, palavras de baixo nível e inclusive tentativas de agressões físicas. Tudo piorou quando o poeta Ronald de Carvalho recitou o poema “Os Sapos”, escrito por Manuel Bandeira. Os refrões onomatopaicos que lembravam o coaxar dos anfíbios que davam nome ao texto incitaram o público a reagir com relinchos, miados, latidos e muitos gritos. Para a maioria dos visitantes, aquilo não poderia ser chamado de poesia. Era loucura! Provavelmente, boa parte dos presentes nem mesmo percebeu as ácidas críticas de Bandeira ao estilo parnasiano, que contava com muitos admiradores naquela época.  
            Nessa segunda noite de novidades e revoltas extremas, os ânimos só foram acalmados pela intervenção musical da pianista Guimar Novaes que, fugindo à proposta inicial da Semana, tocou composições de Chopin e Schumann. Para os exaltados manifestantes, aquilo sim era música, era arte de verdade. O restante não passava de aberrações sem a menor possibilidade de ser chamada de arte.
            No terceiro e último dia, as vaias escassearam... e o público também. Devidamente avisadas das “bizarrices” que aconteciam no Teatro Municipal de São Paulo, algumas pessoas que planejavam assistir aos últimos momentos do evento desistiram e o enceramento tinha tudo para ser tranquilo. Mas o calçado destoante de Heitor Villa-Lobos causou revolta. Segundo ele, aquela atitude tida como rebelde se devia muito mais à inflação causada por um calo que ao desejo de chocar os presentes.
            Terminada a Semana, durante dias ela ainda era motivo de polêmica. Muitas pessoas acusavam os organizadores de confundirem arte com manifestações explícitas de irresponsabilidade. Outras, raríssimas, consideram as ideias ali defendidas válidas e dignas de apreciação. Os jornais, em sua maioria, teciam comentários nada elogiosos aos participantes da S.A.M. , duvidando inclusive da sanidade daqueles jovens metidos a artistas.  Aparentemente o evento havia sido um fracasso, mas na prática ele marcou o início de uma nova era nas artes brasileiras.  A partir daqueles três dias alternados, o modo de pensar escultura, música, pintura, literatura e todas as demais representações artísticas foi drasticamente alterado. Não era mais apenas o padrão acadêmico que imperava. Ele começava a dividir espaço com novas técnicas e estruturas antes inimagináveis.
            Mesmo passadas nove décadas da semana que revolucionou as artes no Brasil, percebe-se que ela ainda é pouco estudada e pouco documentada. Embora nos últimos anos tenham surgidos alguns trabalhos sobre a Semana de Arte Moderna, ainda falta muito a ser esclarecido sobre esse evento e seus reflexos na cultura brasileira. Tentando preencher essa lacuna, Josué Montello coligiu uma coletânea de textos sobre o evento e o publicou, em 1994, sob o título de “O Modernismo na Academia: testemunhos e documentos”, uma leitura obrigatória para quem pretenda compreender as origens do movimento modernista.
            Por uma razão só explicável pela nossa histórica falta de memória para os acontecimentos culturais, a Semana de Arte Moderna, que tanto barulho causou e que fez tantas vozes serem ouvidas ao longo dessas décadas, completa seus noventa anos envolta em um incômodo silêncio, como se fosse apenas mais uma curiosidade nas páginas de um livro didático.

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