sexta-feira, 10 de setembro de 2010

GULLAR... SEMPRE GULLAR

Não consigo negar nem esconder minha admitação pela obra de Ferreira Gullar. Sou fã de toda a obra desse poeta que conseguiu sair dos limites da própria província e, com o poder de suas palavras, alcançou os mais altos postos da literatura brasileira.
Hoje o Poeta completa 80 anos e, como forma de homenagem, republico este artigo que saiu há muitos anos na Revista De Repente, do Piauí, com algumas modificações. Em breve, uma versão mais ampliada e consistente deste estudo saíra no livro Tábua de papel, a ser editado pela Café e Lápis Editora.



GULLAR: O CORDELISTA
José Neres


fonte: Internet: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjBl4vaGkKYSz5ez41vnyp7wrnEWd-CtxKy0YI-ZTjIidxx_7FFsjcajk-AJsMZ_m9oedgqsI9cN31QcApCG-cjJVacva-bnILEMU5Vze03M0Di8ryQA9yi2taSqH-uByHoJfYL8da1vCI/s1600/ferreira+gullar.jpg
            Não há menor dúvida de que Ferreira Gullar é um dos maiores escritores brasileiros do século XX. Com dezenas de livros publicados, o poeta maranhense é conhecido pela crítica e pelo leitor geral por seu tom que mescla o lírico ao social e por denunciar os desmandos dos governantes, separando muito bem, na relação de status quo quais são os dominantes e quais são os dominados. Tal atitude valeu-lhe anos de exílio e inúmeros poemas, como pode muito bem ser comprovado na leitura do livro Rabo de Foguete, sua autobiografia literária publicada no final de 1998.
            Visto por Vinícius de Moraes como “o último grande poeta brasileiro”, Gullar é dono de uma alentada obra, que vai de poemas a ensaios, passando por peças teatrais, prosa experimental, roteiro para telenovelas e séries de televisão, traduções e crônicas. Mas é sem dúvida seu livro, Poema Sujo, escrito durante os anos de chumbo da censura brasileira, a sua maior realização literária.  O crítico piauiense Assis Brasil compara a obra magna de Gullar a uma espécie de nova Canção do Exílio das letras nacionais.
 Conhecido também por seu estilo independente, o poeta partiu de textos de caráter parnasiano, atingiu a aura modernista e investiu em atitudes vanguardistas, brigando com o grupo concretista e trazendo à luz o movimento Neo-Concreto. E, entre 1962 e 1967, publicou, numa grande demonstração de engajamento político (que aparece também  em obras anteriores às datas citadas com outros matizes) quatro romances de cordel, com os seguintes  títulos: João Boa-Morte – Cabra Marcado pra Morrer; Quem Matou Aparecida; Peleja de Zé da Molesta com Tio Sam e História de um Valente.
            Embora a produção cordelística de Ferreira Gullar tenha sido relegada a um segundo plano até mesmo pelos estudiosos de sua obra, ela merece ser lida e relida, pois apresenta versos de boa qualidade e com grande carga de abordagem social. No início da saga de João Boa-Morte, o poeta adverte que o caso:

Sucedeu na Paraíba
mas é uma história banal
em todo aquele nordeste
Podia ser em “Sergipe,
Pernambuco ou Maranhão
Que todo cabra da peste
Ali se chama João
Boa-Morte, vida não

            João é um trabalhador rural que, após desafiar o Coronel Benedito, o dono das terras em que trabalha, se vê ameaçado de morte e é obrigado a deixar a região. Em todos os lugares aonde chega pedindo emprego, João é tratado com desdém, pois o antigo patrão já havia declarado que ninguém poderia contratá-lo, sob pena de sofrer retaliações. Com a mulher e os seis filhos, o herói da narrativa vaga sem perspectiva de alimentar sua família. Finalmente, após a morte de um dos filhos, por inanição, decide matar a mulher e as demais crianças  e cometer suicídio. Quando vai cometer o crime, é encontrado por Chico Vaqueiro, “um lavrador como ele sem dinheiro”, que faz parte da Liga que luta contra os latifundiários. O caboclo diz a João:

O inimigo da gente
é o latifundiário
Que submete nós todos
a esse cruel calvário
(...)
É contra aquele inimigo
que nós devemos lutar.
Que culpa têm os seus filhos?
Culpa de tanto penar?
Vamos mudar o sertão
Pra vida deles mudar.

            Saindo do campo e indo para a cidade, ou melhor, para a favela, mas sem mudar o enfoque da exploração do homem pelo homem, o poeta escreve o cordel Quem Matou Aparecida, subtítulado História de uma favelada que ateou às vestes. O Poema traz a vida e morte de uma moça que:

Que não teve glória, nem fama
de que se possa falar.
Não teve nome distinto:
criança brincou na lama,
fez–se moça sem ter cama
nasceu na Praia do Pinto,
morreu no mesmo lugar.

            Aparecida sai da favela e vai trabalhar como doméstica na residência de uma família rica. Envolta em um turbilhão de acontecimentos, a adolescente é seduzida pelo patrão e é descoberta pela patroa, que a acusa de roubo. Grávida, vai parar na cadeia, onde sofre as maiores humilhações possíveis. Depois de muito sofrimento, conhece o operário Simão, que trabalhava muito, mas ganhava “tão pouco/ que mal dava pra comer”. Vão morar juntos. O rapaz envolve-se em uma greve e é preso pela Repressão. Assim como muitas vítimas da ditadura, Simão desaparecer e nunca mais volta para o “barraco esburacado” onde morava com sua companheira. Sem alimento, a criança morre, no desespero, a mãe, com apenas 15 anos, “derramou álcool na roupa/ para logo fogo acender”. Surgem então os questionamentos Quem Matou Aparecida/ “Por que há ricos e pobres?”. Vindo depois a resposta:

Quem ateou fogo ás vestes
Dessa menina infeliz
Foi esse mundo sinistro
Que ela nem fez nem quis
- Que deve ser destruído
pro povo viver feliz.

            No terceiro cordel temos Zé da Molesta, “Um Zé franzino/ nascido no Ceará/ mas cantador como ele/ no mundo inteiro não há”. Numa típica alegoria, Gullar põe Zé da Molesta como sinônimo do povo brasileiro, sofrido, mas inteligente e improvisador. Para opositor, temos o Tio Sam, um estereótipo da cultura americana, arrogante e dominador, impondo seus desejos pela força. Desafiado pelo americano, o nordestino foi parar no prédio da ONU, para provar, que mesmo pobre, muito vale e que sua pobreza ocorrer em virtude dos constantes saques que os Estados Unidos promovem no Brasil. Rendido no embate, o norte-americano apela pela força bruta de seu poderio bélico e econômico, e o brasileiro tem de fugir dali para continuar com a vida. No desespero, o poderoso Tio Sam:

Gritou: “Chega de conversa,
Que estou desmoralizado!
Desliguem a televisão,
Deixem o circuito cortado,
Mobilizem os fuzileiros,
Quero ver esse ‘cabra’ amarrado.
Vamos lhe cortar a língua
Pra ele ficar calado.

            Finalmente, temos a História de um Valente, que traz a saga de Gregório Bezerra, um “filho de pais camponeses” que sai de Pernambuco e se torna soldado. Deixa o exército e ingressa no PCB, participa da revolta de 35, vai preso, é torturado, e depois tornar-se deputado, mas perde o mandato quando o Partido Comunista é posto na ilegalidade. Já sexagenário volta para cadeia. O poeta termina os versos conclamados e alertando:

Gregório está na cadeia.
Não basta apenas louvá-lo.
O que a ditadura espera
É a hora de eliminá-lo.
Juntemos nossos esforços
Para poder libertá-lo,
Que o povo precisa dele
Pra em sua luta ajudá-lo.

            É importante notar que em todos os seus cordéis, Ferreira Gullar procura soluções marxistas para os problemas enfrentados no Brasil. Para ele só há um modo de salvar o que temos: a luta de classes, através de uma revolução. Logicamente, as idéias defendidas pelo escritor, bem como as propostas por ele dadas não agradaram ao “Governo”, que, na época, o considerou uma ameaça.
            Interessante perceber também que somente agora parece que os leitores estão entrando em contato com os cordéis de Gullar. Mesmo que os textos fizessem parte das várias edições de Toda Poesia, acabavam servindo mais como uma curiosidade que como fonte de leitura e de estudo. Recentemente os textos foram reunidos em um livro chamado Romances de Cordel, uma edição que valorizou os textos, pois os tirou do conjunto geral e ressaltou a beleza individual de cada narrativa em cordel. Hoje os poemas podem também ser lidos na belíssima edição de Poesia Completa, Teatro e Prosa, da Nova Aguilar Editora, organizada pelo professor Antônio Carlos Secchin.
            Mesmo o próprio poeta dizendo que os poemas de tom dominante político são pobres, não podemos negar que a coragem de mostrar uma outra face do País em um momento tão melindroso já é o suficiente para imortalizar um escritor. E, inteligentemente, Gullar escolheu uma forma popular para trabalhar um tema que a todos interessa: a liberdade. Ao contrário do que alguns críticos pensam, o cordel não empobreceu a obra de Ferreira Gullar, pelo contrário, fê-la tornar-se mais rica, densa e humana.

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